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Introdução

“Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar …”
Antônio Machado

Sempre carreguei a certeza interna de que a vida não pode ser caracterizada simplesmente nesta dimensão facilmente perceptível pelos sentidos e totalmente sujeita à força criadora do pensamento a se materializar em ações concretas que moldam a realidade tangível à nossa volta.

Embora não compreendesse completamente como esta realidade transcendente se relacionava com a vida material e discordasse da ideia de ritos e práticas materiais para chegar ao espiritual, eu sentia uma força norteadora concreta e invisível por trás de tudo que me fazia repelir a religião1 e abraçar o Espiritual.

Até hoje a religiosidade contida nesta certeza interna me move ajustando olhares e promovendo certo encantamento quando me deparo com a postura firme de homens de ideal que são capazes de promover mudanças substanciais à sua volta, mesmo quando movidos por objetivos plenamente materiais e em alguns casos centrados em seus próprios desejos.

Considero a postura ética no sentido de promoção do bem estar e do progresso coletivo que, mesmo à custa de muita luta e de variadas dificuldades advindas das escolhas em favor da humanidade, promove mudanças significativas no coletivo terrestre como sendo o primor deste encantamento.

Cresci ouvindo sobre a geração anterior à de meus pais, sobre suas histórias e valores que se manifestavam até mesmo através de ações triviais no âmbito da família. Homens e mulheres que influenciaram de tal forma a constituição do caráter dos que estavam à volta que suas vivências foram convertidas em histórias fantásticas de encantamento passadas para as gerações seguintes servindo como poderosas influências capazes de moldar as fibras do caráter.

Homens e mulheres que assumiram as rédeas de seus destinos e escreveram a própria história superando muitas dificuldades e oposições encantaram-me na infância e em parte da juventude através de relatos desprovidas do contato com religiões e repletos de certezas, bons sentimentos e identificação de possibilidades.

A ideia de religião sempre passou ao largo nas relações de meu pequeno círculo familiar. Cumpria alguns ritos da Igreja Católica Apostólica Romana, muito mais por força das convenções sociais do que por adesão à filosofia proposta. Cresci sempre desatento aos valores do credo que, para o círculo familiar mais amplo, me caracterizava como indivíduo desde o batismo e profundamente incomodado pelos ritos que julgava enfadonhos, desconfortáveis e desnecessários.

Vivi escudado quanto à ideia de religião e profundamente conectado à ação no mundo e às comunicações extrapessoais, atribuídas a entidades invisíveis que se manifestavam através de amigos e parentes próximos que sempre chegavam de forma oportuna para promover curas e dar conselhos ou recados.

De certa forma o extrapessoal e o sagrado sempre estiveram presentes em minha vida; a começar pela “mesa dos santos” de minha mãe e pela pintura a óleo de entidades religiosas que ficava pendurada sobre a mesa. Acostumei-me com as velas acesas, com os incensos, com as imagens e com as “obrigações2” semanais que caracterizavam os ritos maternos, para mim desconfortáveis pela forma e profundamente intrigantes e encantadores pela manifestação de fé, respeito e submissão.

Papai se dizia espírita mas dificilmente frequentava centros espíritas ou estudava o tema. Embora não tivéssemos livros espíritas em casa, as histórias sobre a tia Chiquita 3, uma médium ostensiva que possibilitava manifestações extrapessoais de uma entidade indígena chamada Acanajé, eram frequentemente recontadas e sempre ligadas de alguma forma à doutrina espírita.

O grande Índio, patrono espiritual da Casa do Coração, instituição espírita na Zona Sul do Rio de Janeiro, vivia em nosso cotidiano através de um entalhe em madeira pendurado na sala de estar que funcionava como ponto de ligação de meu pai com a dimensão transcendente e sempre o levava às lágrimas nos momentos de oração. Manifestações de uma fé simples, desprovida de ritos e que me encantavam pela sinceridade.

Cresci envolvido por manifestações de religiosidade, de respeito e de veneração a potências superiores que a tudo coordenam, que a todos submetem pelo amor. Cresci quase que completamente desvinculado de uma religião formal, mas intensamente estimulado por atos de fé que se desdobravam em posturas éticas nas relações com todos à volta.

Nos tempos de juventude, diante dos dilemas naturais de construção de identidade, após uma grande busca religiosa em vários templos, decidi seguir livremente pelo mundo. Tentava responder às dores da alma que me afligiam. Precisava de respostas, mas não as encontrava nas religiões e nem no mundo. Inconscientemente iniciei um período de mergulhos intensos para tentar seguir a vida de forma anestesiada até o dia que uma grande amizade levou-me a um centro espírita que, diferentemente do que havia aprendido, não promovia cultos e nem contatos extrapessoais de forma intensa e pública.

Era uma casa espírita voltada ao estudo e à reflexão que pregava a necessidade de aplicação da razão e da ciência para o estabelecimento de uma filosofia de vida baseada nos preceitos de Jesus Cristo, personagem até então desconhecido para mim e que se resumia a uma história triste e sem sentido que terminava em crucificação.

Apenas mais tarde eu descobriria que o estudo, o uso da razão e da ciência, a adesão a uma filosofia de vida que visasse a valorização do espírito sobre a matéria e a moralização dos atos e dos sentimentos caracterizavam a base da maioria das casas espíritas e que, na realidade, eu é quem havia visto parcialmente o trabalho desenvolvido a partir das pesquisas e obras do francês Allan Kardec.

Equivocadamente eu tomava o fenômeno ao invés da filosofia hipervalorizando a dimensão dos contatos extrapessoais, conhecidos pelo espiritismo como expressões da mediunidade4, em detrimento aos ensinamentos espirituais libertadores que propunham uma filosofia de vida.

Os princípios contidos nos livros escritos por Allan Kardec há um século e meio reverberaram intensamente na alma e aos poucos dediquei muitas horas livres a uma busca intensa para compreender e aprofundar aqueles valores que sempre fluíram de forma natural e não racional de meu coração para o mundo e que agora apareciam transparentes nas leituras e nos estudos.

Tendo a razão sempre à frente, tornei-me mais sensível ao entrar em contato com o sofrimento alheio e naturalmente signifiquei parte dos meus próprios sofrimentos, fator que abriu possibilidades para o desenvolvimento de competências espirituais, afetivas e mediúnicas que me tiraram da dimensão puramente material, racional e científica para me atirar na dimensão humana de minha própria existência que até então estivera adormecida e deixada para segundo plano.

À época minhas relações familiares estavam bastante conflitadas, aflitivas e conturbadas e eu simplesmente não conseguia aplicar na prática tudo o que reverberava na consciência através do uso da razão e dos estudos da doutrina espírita, embora tentasse intensamente adotar uma postura mais cristã.

O desencarne de mamãe foi significativo neste processo familiar de construção de mim mesmo e me jogou em um vazio tão intenso que nada o preenchia. As certezas viraram dúvidas e o chão de uma vida rompeu-se sob meus pés.

As relações com a razão pura e com o cientificismo estavam rompidas definitivamente e a necessidade de me humanizar ganhou uma dimensão concreta. A ciência e a razão se transformaram em ferramentas de trabalho para atingir algo maior! Sentia-me direcionado para as certezas subjetivas, não mensuráveis materialmente e até então jamais vividas de forma sincera no campo das emoções. A fé cega e os rituais não eram uma opção e o caminho proposto pelo espiritismo fazia muito sentido.

A filosofia espírita parecia ser um caminho natural e seguro que me levaria a patamares de maior harmonia para comigo mesmo e para com o mundo à volta. Assim nascia um processo inconsciente de pesquisa que hoje resulta em diversas intervenções no mundo como este livro, obra em que procuro refletir sobre a construção da fé como processo de mergulho em nós mesmos em busca de significado e que gera ações concretas para além de nós mesmos interferindo profundamente na realidade dos que estão à nossa volta.

Foram muitas as lágrimas que me trouxeram até aqui. Lágrimas de dor e de alegria; momentos de tristeza e de plenitude que verteram através de uma pesquisa inacabada e repleta de sincroniscidades 5 que pode apresentar a você um pouco de meu olhar para a vida.

Não tenho a pretensão de estabelecer guias práticos ou receitas para a construção da fé, mas de provocá-lo para a necessidade de criação de seu próprio conceito de fé que o apoiará na transcendência de sua dimensão material em busca da espiritual.

Uso minhas próprias experiências; os relatos dos apóstolos, em especial a história da construção da fé do apóstolo Pedro; e os ensinamentos da doutrina espírita como ferramentas de trabalho, pesquisa e transformação. Desejo que este material te seja útil.

Gostaria ainda de te falar que esta história está longe de ter um término, talvez possa ser vista como uma fotografia. Um instantâneo que carrega em si uma história e uma expectativa imprecisa de felicidade! Penso que precisarei de muitas encarnações para poder falar com propriedade sobre o tema, mas acredito que as reflexões aqui contidas poderão ajudá-lo em sua jornada multimilenar.

Proponho que este livro seja o início de uma conversa e gostaria de ouvir suas impressões, histórias e questionamentos; experiências ímpares que o caracterizam, que definem quem você é e que podem auxiliar na minha própria jornada. Assim começamos agora a construir juntos um novo instantâneo.

Boa conversa para nós dois.


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Sumário


  1. Vejo aqui a religião como uma instituição que agrega pessoas que compartilham visões de religiosidade mais ou menos comuns. Ela estabelece rituais, práticas e discursos que, de certa forma, expressam a percepção coletiva sobre a ligação do Homem com suas origens.
  2. Rituais periódicos estabelecidos com propósitos de manter a boa relação com as entidades espirituais trazendo prosperidade para a casa do religioso ou dos que por ele são atendidos.
  3. Fundadora da Casa do Coração no bairro de Ipanema, Rio de Janeiro
  4. A mediunidade é a capacidade que certas pessoas possuem de se comunicar com os espíritos, normalmente quase imperceptíveis às pessoas.
  5. Sincronicidade é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para definir acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado.